sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Inventei de inventar um blog pra colocar trabalhos da Academia. A tentativa é de achar coisas novas de amigos e mostrar o que é feito por graduandos dentro da faculdade. Enfim, tentando ao máximo escapar do pedantismo e do diletantismo, quem puder e quiser contribuir pro surgimento de coisas novas e criativas, e tenha idéias de como fazer com que essas coisas sejam espalhadas por aí, gritem pra mim! Aí vai o endereço: www.batatasbaroas.blogspot.com

Gradicido!

Os sedutores II

“Quando os amigos lhe perguntavam quantas mulheres tivera, ele dava uma resposta evasiva e, se insistiam, respondia: “umas duzentas”. Alguns invejosos afirmavam que exagerava. Defendia-se: “Nem tanto! Minhas relações com as mulheres começaram há mais ou menos vinte e cinco anos. Dividindo duzentos por vinte e cinco, dá mais ou menos oito mulheres por ano. Não é tanto assim”.
Mas, desde que vivia com Tereza, sua atividade erótica tropeçava em dificuldades de organização: não podia dedicar-lhe (entre sala de operações e sua casa) senão uma pequena faixa de tempo que decerto explorava intensamente (como um agricultor aproveita ao máximo sua faixa de terra), mas não podia se comparar às desesseis horas que súbito recebera de presente. (Digo dezesseis, pois, mesmo as oito horas em que lavava vidraças ofereciam mil oportunidades para marcar encontros com novas vendedoras, funcionárias ou donas-de-casa.)
O que procurava em todas essas mulheres? Por que elas o atraíam? Não seria o amor físico a eterna repetição do mesmo ato?
De forma nenhuma. Há sempre uma porcentagem de inesperado. Ao ver uma mulher vestida, podia de fato imaginar mais ou menos como seria ela nua ( isso sua experiência de médico completava a experiência de amante), mas entre a aproximação da idéia e a precisão da realidade subsistia um pequeno intervalo de inimaginável, e era essa lacuna que não o deixava em paz. Além disso, a busca do inimaginável não termina com a descoberta da nudez, vai além dela: que cara faria ela ao retirar a roupa? O que diria quando fizesse amor? Como soariam seus suspiros? Que rictos se estampariam em seu rosto na hora do orgasmo?
Aquilo que o “eu” tem de único se esconde exatamente naquilo que o ser humano tem de inimaginável. Só podemos imaginar aquilo que é idêntico em todos os seres humanos, aquilo que lhes é comum. O “eu” individual é aquilo que se distingue do geral, portanto aquilo que precisa ser desvelado, descoberto e conquistado junto ao outro.
Tomas, que durante os últimos dez anos de sua atividade médica vinha ocupando exclusivamente do cérebro humano, sabia que não havia nada mais difícil do que identificar o “eu”. Entre Hitler e Einstein, entre Brejnev e Soljenitsin, há muito mais semelhanças do que diferenças. Se quiséssemos expressar essa idéia em números, poderíamos dizer que existe entre eles um milionésimo de diferença e novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e nove milionésimos de semelhança.
Tomas era obcecado pelo desejo de descobrir esse milionésimo, de apoderar-se dele; era essa a essência de sua obsessão pelas mulheres. Não era obcecado pelas mulheres, era obcecado pelo que em cada uma delas havia de inimaginável, ou melhor, era obcecado por esse milionésimo que torna uma mulher diferente das outras.
(Talvez sua paixão de cirurgião se juntasse aqui à sua paixão pelas mulheres. Não largava o bisturi imaginário, nem mesmo quando estava com suas amantes. Desejava apossar-se de algo profundamente escondido no interior delas, e para isso era preciso rasgar a camada superficial que as envolvia.)
Temos, é claro, o direito de perguntar por que ia buscar na sexualidade esse milionésimo de diferença. Por que não procurá-lo, por exemplo, no andar, nas preferências culinárias ou no senso estético de uma ou de outra?
De fato, esse milionésimo de diferença está presente em todos os aspectos da vida humana, e por toda parte é desvelado em público, não havendo necessidade de descobri-lo, ou de um bisturi para chegar a ele. Que uma mulher prefira queijo a todas as outras comidas e que outra não suporte couve-flor é certamente um sinal de originalidade, mas vê-se logo que essa originalidade é insignificante e inútil, e que perderíamos tempo procurando encontrar algum valor nela.
È só na sexualidade que o milionésimo de diferença aparece como uma coisa preciosa, que não se oferece em público e é preciso conquistar. Há meio século, esse gênero de conquista exigia tempo (semanas, às vezes meses!), e o valor do objeto conquistado media-se pelo tempo consagrado a obtê-lo, diminuído bastante, a sexualidade ainda é para nós o cofre onde se esconde o mistério do “eu” feminino.
Não era, portanto, o desejo do prazer (o prazer vinha, digamos, como um prêmio extra), mas o desejo de apossar-se do mundo (de abrir com um bisturi o corpo prostrado do mundo) que o levava à conquista das mulheres.”

Dez réis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.


António Gedeão

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Receita

-È, doutor...tá tudo muito ruim! Ruim mesmo! E doído, digo mais! Parece que tem uma coisa que não quer sair de mim, um incômodo aqui nas entranhas mesmo...E é desesperador porque eu não consigo ver motivo, causa nenhuma. Isso, que se esconde em mim, vem me acompanhando faz um tempo já, e já tentei de tudo desde então: fiz milhões de novas amizades; já tive outros milhões de maravilhosos amores; carnaval não faltou também, e na verdade parecia que sempre tudo ia acabar se eu metesse os pés pelas mãos, fizesse alguma coisa extraordinária, vivesse 5 anos em 5 meses. Mas tô desesperado de incômodo! Ele não me dá sossego, não houve solução até agora, e não tenho esperanças que as coisas melhorem. É isso o principal: tô sem esperanças que tudo melhore...
-E sua família?
-Que que tem doutor?
-Fale um pouco dela...
-Ahm, tudo normal. E isso é desesperador também, sabe? Minha vida é normalíssima! Tudo dá certo. Tudo mesmo. Mas sempre tem esse diabinho nas minhas entranhas, esse rebuliço, ou melhor, essa coisa sólida e parada, e que me para, que não sai por nada, que eu não consigo me livrar... É, como tudo o que incomoda, inominável.
-Você tem alergia a alguma substância?
-Como assim?
-A algum remédio?
-Que eu saiba, não, Doutor!
-Então vou te receitar isso aqui, tá? (escreve num papel)
-Uhum, doutor...
-Tome duas vezes ao dia...(escreve), compre genérico mesmo...se não achar Luftal, tem também Dimeticona, é mais barato. Quinze gotas diluídas.
-Só quero que isso passe, Doutor, (passa a mão pela barriga, aflito)
-Em dois, três dias no máximo passa...te garanto. Deve ser má alimentação. Só pode ser, te garanto!