eu poderia dizer que a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza. temos consciência da nossa própria fraqueza, mas não queremos resistir a ela e nos abandonar. embriagamo-nos com nossa própria fraqueza. queremos ser mais fracos ainda, queremos desabar em plena rua, à vista de todos, queremos estar no chão, ainda mais baixo que o chão.
Milan Kundera em 'A insustentável leveza do ser'
quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
Os acrobatas
Subamos!
Subamos acima
Subamos além, subamos
Acima do além, subamos!
Com a posse física dos braços
Inelutavelmente galgaremos
O grande mar de estrelas
Através de milênios de luz.
Subamos! Como dois atletas
o rosto petrificado
No pálido sorriso do esforço
Subamos acima
Com a posse física dos braços
E os músculos desmesurados
Na calma convulsa da ascensão
Oh, acima
Mais longo que tudo
Aléme, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
Lá onde o infinito
De tão infinito
Nem mais nome tem
Subamos!
Tensos
Pela corda luminosa
Que pende invisível
E cujos nós são astros
Queimando nas mãos
Subamos à tona
Do grande mar de estrelas
Onde dorme a noite
Subamos!
Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
a carótida nodosa
Na fibra do pescoço
Os pés agudos em ponta
Como no espasmo.
E quando
Lá, acima
Além, mais longe que acima do além
Adiante do véu de Betelgeuse
Depois do país de Altair
Sobre o cérebro de Deus
Num último impulso
Libertados do espírito
Despojados da carne
Nós nos possuiremos
E morreremos
MOrreremos alto, imensamente
Imensamente alto.
Vinícius de Moraes
Subamos acima
Subamos além, subamos
Acima do além, subamos!
Com a posse física dos braços
Inelutavelmente galgaremos
O grande mar de estrelas
Através de milênios de luz.
Subamos! Como dois atletas
o rosto petrificado
No pálido sorriso do esforço
Subamos acima
Com a posse física dos braços
E os músculos desmesurados
Na calma convulsa da ascensão
Oh, acima
Mais longo que tudo
Aléme, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
Lá onde o infinito
De tão infinito
Nem mais nome tem
Subamos!
Tensos
Pela corda luminosa
Que pende invisível
E cujos nós são astros
Queimando nas mãos
Subamos à tona
Do grande mar de estrelas
Onde dorme a noite
Subamos!
Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
a carótida nodosa
Na fibra do pescoço
Os pés agudos em ponta
Como no espasmo.
E quando
Lá, acima
Além, mais longe que acima do além
Adiante do véu de Betelgeuse
Depois do país de Altair
Sobre o cérebro de Deus
Num último impulso
Libertados do espírito
Despojados da carne
Nós nos possuiremos
E morreremos
MOrreremos alto, imensamente
Imensamente alto.
Vinícius de Moraes
domingo, 16 de novembro de 2008
Soneto do amor total
Amo-te tanto, meu amor...não cante
humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim ,muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
Vinícius de Moraes
humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim ,muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
Vinícius de Moraes
terça-feira, 11 de novembro de 2008
My mistress’s eyes are nothing like the Sun;
Coral is far more red than her lips’ red;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wire, black wires grow on her head.
I have seen roses damasked, red and white,
But not such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that my mistress reeks...
Willian Shakespeare, citado em 'Contraponto', de Aldous Huxley.
Coral is far more red than her lips’ red;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wire, black wires grow on her head.
I have seen roses damasked, red and white,
But not such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that my mistress reeks...
Willian Shakespeare, citado em 'Contraponto', de Aldous Huxley.
sábado, 8 de novembro de 2008
sábado, 11 de outubro de 2008
Noturno à janela do apartamento
Silencioso cubo de treva:
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.
Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.
A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.
Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.
Triste farol da Ilha Rasa.
C. D. de Andrade
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.
Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.
A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.
Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.
Triste farol da Ilha Rasa.
C. D. de Andrade
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
A hipótese comunista deve ser abandonada?
Se a concorrência, o “livre mercado”, a soma dos pequenos prazeres e os muros que nos protegem do desejo dos fracos são o alfa e o ômega de toda existência, coletiva ou privada, o animal humano não vale um tostão furado.
Gostaria de situar a eleição e a presidência de Nicolas Sarkozy, o qual, convenhamos, não constitui uma página grandiosa da história da França, num horizonte mais amplo. Numa espécie de afresco hegeliano, digamos, da história mundial recente. Estando entendido que por história recente não me refiro à tríade presidencial François Mitterrand-Jacques Chirac-Sarkozy, e sim ao devir da política de emancipação operária e popular iniciada há cerca de dois séculos.
Desde a Revolução Francesa e sua paulatina repercussão universal, desde os desdobramentos mais radicalmente igualitários da Revolução – entre eles as Leis do Máximo do Comitê robespierrista e as teorizações de Gracchus Babeuf –, sabemos que o comunismo é a hipótese certa. Na verdade, não existe outra, ou, em todo caso, não conheço nenhuma. Quem quer que renuncie a essa hipótese estará instantaneamente se submetendo à economia de mercado, à democracia parlamentar (que é a forma de Estado apropriada ao capitalismo) e ao caráter inevitável, “natural”, das desigualdades mais monstruosas.
“Comunismo”, o que isso significa? Como argumenta Karl Marx nos Manuscritos de 1844, o comunismo é uma idéia que se refere ao destino da humanidade. É absolutamente necessário distinguir este sentido da palavra do adjetivo “comunista”, inteiramente desgastado em expressões como “partidos comunistas”, “mundo comunista”, para não falar em “Estado comunista”.
“Comunista” tem primeiramente o significado negativo, como vemos no Manifesto do Partido Comunista: a lógica das classes, da subordinação fundamental dos trabalhadores a uma classe dominante, pode ser superada. Tal dispositivo, que é o dispositivo da história desde a Antigüidade, não é inevitável. Por conseguinte, o poder oligárquico, cristalizado no poder dos Estados, daqueles que detêm a riqueza e organizam sua circulação, não é inevitável. A hipótese comunista afirma ser possível outra organização coletiva, que eliminará a desigualdade das riquezas e até mesmo a divisão do trabalho: cada indivíduo será um trabalhador polivalente, e as pessoas transitarão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre a cidade e o campo.
A apropriação privada de riquezas monstruosas e sua transmissão familiar desaparecerá. A existência de um aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil, já não aparecerá como uma necessidade evidente. Após uma breve seqüência de “ditadura do proletariado”, encarregada de destruir os restos do velho mundo, diz Marx, haverá uma longa seqüência de reorganização, com base na “livre associação” de produtores e criadores, a qual servirá de suporte para um “depauperamento do Estado”.
O “comunismo” designa tão-somente esse conjunto bastante genérico de representações intelectuais. Esse conjunto é o horizonte de toda iniciativa que, por local e limitada no tempo que seja, ao romper com a ordem das opiniões estabelecidas (ou seja, a necessidade das desigualdades e do instrumento estatal para garanti-las), constitui um fragmento de uma política de emancipação. Para usar uma expressão de Kant, trata-se de uma idéia com função reguladora, e não de um programa.
É absurdo qualificar os princípios comunistas (no sentido que acabo de dar) de utopia, como acontece com freqüência. Esses princípios são esquemas intelectuais, sempre atualizados de formas diversas, que servem para traçar linhas de demarcação entre diferentes políticas. Grosso modo, uma dada seqüência política ou é compatível com esses princípios, e é emancipadora no sentido amplo do termo, ou bem a eles se opõe, e é reacionária.
Se ainda é verdade, como disse Sartre, que “todo anticomunista é um cão”, é porque toda seqüência política que, nos seus princípios ou na ausência de qualquer princípio, se mostra formalmente oposta à hipótese comunista, deve ser vista como contrária à emancipação da humanidade inteira – e, portanto, ao destino propriamente humano da humanidade. Quem não ilumina o devir da humanidade com a hipótese comunista (quaisquer que sejam as palavras que empregue, pois palavras importam pouco) o estará reduzindo, no que tange ao seu futuro coletivo, à animalidade. Como se sabe, é “concorrência” o nome contemporâneo, capitalista, dessa animalidade. Ou seja: guerra de interesses, e nada mais.
Enquanto idéia pura de igualdade, a hipótese comunista existe em estado prático desde os primórdios do Estado. Sempre que a ação das massas se opõe, em nome da justiça igualitária, à coerção do Estado, vemos surgir os rudimentos, ou fragmentos, da hipótese comunista. As revoltas populares, como a dos escravos liderados por Spartacus, ou a dos camponeses alemães liderados por Thomas Müntzer, são exemplos dessa existência prática.
Na forma explícita que lhe atribuem alguns pensadores e ativistas da Revolução Francesa, a hipótese comunista inaugura a modernidade política. É ela que derruba as estruturas mentais do Antigo Regime, sem, contudo, se articular com as formas políticas democráticas que a burguesia transformaria em instrumento da sua conquista do poder. Este ponto é essencial: desde o início, a hipótese comunista em nada coincide com a hipótese democrática que levará ao parlamentarismo contemporâneo. À luz da hipótese comunista, o que parece ser importante e criativo é de natureza diversa daquilo que é selecionado pela historiografia democrática burguesa. Essa é a razão por que, ao fornecer fundamentos materialistas à primeira grande seqüência efetiva da política de emancipação moderna, Marx, por um lado, retoma a palavra “comunismo” e, por outro, afasta-se de toda “politicagem” democrática – ele sustenta, com base na Comuna de Paris, que o Estado burguês, por mais democrático que possa ser, deve ser destruído.
Numa entrevista, Sartre diz: “Se a hipótese comunista não estiver correta, se não for praticável, significa então que a humanidade não é muito diferente das formigas ou dos cupins.” O que ele quer dizer com isso? Que se a concorrência, o “livre mercado”, a soma dos pequenos prazeres e os muros que nos protegem do desejo dos fracos são o alfa e o ômega de toda existência, coletiva ou privada, o animal humano não vale um tostão furado.
George W. Bush, amparado pelo conservantismo agressivo e o espírito de cruzada, e Sarkozy, amparado pela disciplina trabalho-família-pátria, querem reduzir a imensa maioria dos seres humanos a esse “tostão furado”. E a “esquerda” é ainda pior, quando justapõe a essas violências a sua generosidade oca, o seu vago espírito de caridade. À concorrência mórbida, à vitória dos filhinhos e filhinhas de papai, ao ridículo super-homem das finanças desenfreadas, ao herói dopado das Bolsas planetárias, a esquerda oferece os mesmos atores, mas com alguma gentileza social, um pouco de óleo de nozes na engrenagem, migalhas de pão bento para os deserdados – só tomando emprestado de Nietzsche, em suma, a figura exangue do último homem.
Acabar de vez com o Maio de 68 [como defendeu Nicolas Sarkozy na campanha eleitoral] significa aceitar que não existe outra escolha senão entre o niilismo hereditário das finanças e a piedade social. É preciso, então, não apenas reconhecer que o comunismo ruiu na União Soviética, não só admitir que o Partido Comunista Francês se desfez miseravelmente, mas também, e principalmente, renunciar à hipótese de que Maio de 68 foi uma criação militante claramente consciente do fracasso do “comunismo” de Estado. Maio de 68 e mais ainda os cinco anos que se seguiram inauguraram uma nova seqüência da verdadeira hipótese comunista, aquela que sempre mantém distância do Estado. Ninguém sabia, decerto, no que aquilo tudo ia dar, mas se sabia que se tratava do renascimento da hipótese.
Se Sarkozy é o nome desse estado de coisas, é preciso renunciar a toda idéia de renascimento semelhante. Se a sociedade humana é uma coleção de indivíduos que perseguem seus próprios interesses, se tal é a eterna realidade, o filósofo pode, e deve, abandonar o animal humano a esse triste destino.
Mas não deixaremos que o triunfante Sarkozy nos dite o sentido da existência nem as tarefas da filosofia. Pois isso a que estamos assistindo não impõe de maneira alguma a renúncia à hipótese comunista, e sim a reflexão sobre o momento em que estamos da história dessa hipótese.
Alain Badiou, publicado na revista Piauí.
Gostaria de situar a eleição e a presidência de Nicolas Sarkozy, o qual, convenhamos, não constitui uma página grandiosa da história da França, num horizonte mais amplo. Numa espécie de afresco hegeliano, digamos, da história mundial recente. Estando entendido que por história recente não me refiro à tríade presidencial François Mitterrand-Jacques Chirac-Sarkozy, e sim ao devir da política de emancipação operária e popular iniciada há cerca de dois séculos.
Desde a Revolução Francesa e sua paulatina repercussão universal, desde os desdobramentos mais radicalmente igualitários da Revolução – entre eles as Leis do Máximo do Comitê robespierrista e as teorizações de Gracchus Babeuf –, sabemos que o comunismo é a hipótese certa. Na verdade, não existe outra, ou, em todo caso, não conheço nenhuma. Quem quer que renuncie a essa hipótese estará instantaneamente se submetendo à economia de mercado, à democracia parlamentar (que é a forma de Estado apropriada ao capitalismo) e ao caráter inevitável, “natural”, das desigualdades mais monstruosas.
“Comunismo”, o que isso significa? Como argumenta Karl Marx nos Manuscritos de 1844, o comunismo é uma idéia que se refere ao destino da humanidade. É absolutamente necessário distinguir este sentido da palavra do adjetivo “comunista”, inteiramente desgastado em expressões como “partidos comunistas”, “mundo comunista”, para não falar em “Estado comunista”.
“Comunista” tem primeiramente o significado negativo, como vemos no Manifesto do Partido Comunista: a lógica das classes, da subordinação fundamental dos trabalhadores a uma classe dominante, pode ser superada. Tal dispositivo, que é o dispositivo da história desde a Antigüidade, não é inevitável. Por conseguinte, o poder oligárquico, cristalizado no poder dos Estados, daqueles que detêm a riqueza e organizam sua circulação, não é inevitável. A hipótese comunista afirma ser possível outra organização coletiva, que eliminará a desigualdade das riquezas e até mesmo a divisão do trabalho: cada indivíduo será um trabalhador polivalente, e as pessoas transitarão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre a cidade e o campo.
A apropriação privada de riquezas monstruosas e sua transmissão familiar desaparecerá. A existência de um aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil, já não aparecerá como uma necessidade evidente. Após uma breve seqüência de “ditadura do proletariado”, encarregada de destruir os restos do velho mundo, diz Marx, haverá uma longa seqüência de reorganização, com base na “livre associação” de produtores e criadores, a qual servirá de suporte para um “depauperamento do Estado”.
O “comunismo” designa tão-somente esse conjunto bastante genérico de representações intelectuais. Esse conjunto é o horizonte de toda iniciativa que, por local e limitada no tempo que seja, ao romper com a ordem das opiniões estabelecidas (ou seja, a necessidade das desigualdades e do instrumento estatal para garanti-las), constitui um fragmento de uma política de emancipação. Para usar uma expressão de Kant, trata-se de uma idéia com função reguladora, e não de um programa.
É absurdo qualificar os princípios comunistas (no sentido que acabo de dar) de utopia, como acontece com freqüência. Esses princípios são esquemas intelectuais, sempre atualizados de formas diversas, que servem para traçar linhas de demarcação entre diferentes políticas. Grosso modo, uma dada seqüência política ou é compatível com esses princípios, e é emancipadora no sentido amplo do termo, ou bem a eles se opõe, e é reacionária.
Se ainda é verdade, como disse Sartre, que “todo anticomunista é um cão”, é porque toda seqüência política que, nos seus princípios ou na ausência de qualquer princípio, se mostra formalmente oposta à hipótese comunista, deve ser vista como contrária à emancipação da humanidade inteira – e, portanto, ao destino propriamente humano da humanidade. Quem não ilumina o devir da humanidade com a hipótese comunista (quaisquer que sejam as palavras que empregue, pois palavras importam pouco) o estará reduzindo, no que tange ao seu futuro coletivo, à animalidade. Como se sabe, é “concorrência” o nome contemporâneo, capitalista, dessa animalidade. Ou seja: guerra de interesses, e nada mais.
Enquanto idéia pura de igualdade, a hipótese comunista existe em estado prático desde os primórdios do Estado. Sempre que a ação das massas se opõe, em nome da justiça igualitária, à coerção do Estado, vemos surgir os rudimentos, ou fragmentos, da hipótese comunista. As revoltas populares, como a dos escravos liderados por Spartacus, ou a dos camponeses alemães liderados por Thomas Müntzer, são exemplos dessa existência prática.
Na forma explícita que lhe atribuem alguns pensadores e ativistas da Revolução Francesa, a hipótese comunista inaugura a modernidade política. É ela que derruba as estruturas mentais do Antigo Regime, sem, contudo, se articular com as formas políticas democráticas que a burguesia transformaria em instrumento da sua conquista do poder. Este ponto é essencial: desde o início, a hipótese comunista em nada coincide com a hipótese democrática que levará ao parlamentarismo contemporâneo. À luz da hipótese comunista, o que parece ser importante e criativo é de natureza diversa daquilo que é selecionado pela historiografia democrática burguesa. Essa é a razão por que, ao fornecer fundamentos materialistas à primeira grande seqüência efetiva da política de emancipação moderna, Marx, por um lado, retoma a palavra “comunismo” e, por outro, afasta-se de toda “politicagem” democrática – ele sustenta, com base na Comuna de Paris, que o Estado burguês, por mais democrático que possa ser, deve ser destruído.
Numa entrevista, Sartre diz: “Se a hipótese comunista não estiver correta, se não for praticável, significa então que a humanidade não é muito diferente das formigas ou dos cupins.” O que ele quer dizer com isso? Que se a concorrência, o “livre mercado”, a soma dos pequenos prazeres e os muros que nos protegem do desejo dos fracos são o alfa e o ômega de toda existência, coletiva ou privada, o animal humano não vale um tostão furado.
George W. Bush, amparado pelo conservantismo agressivo e o espírito de cruzada, e Sarkozy, amparado pela disciplina trabalho-família-pátria, querem reduzir a imensa maioria dos seres humanos a esse “tostão furado”. E a “esquerda” é ainda pior, quando justapõe a essas violências a sua generosidade oca, o seu vago espírito de caridade. À concorrência mórbida, à vitória dos filhinhos e filhinhas de papai, ao ridículo super-homem das finanças desenfreadas, ao herói dopado das Bolsas planetárias, a esquerda oferece os mesmos atores, mas com alguma gentileza social, um pouco de óleo de nozes na engrenagem, migalhas de pão bento para os deserdados – só tomando emprestado de Nietzsche, em suma, a figura exangue do último homem.
Acabar de vez com o Maio de 68 [como defendeu Nicolas Sarkozy na campanha eleitoral] significa aceitar que não existe outra escolha senão entre o niilismo hereditário das finanças e a piedade social. É preciso, então, não apenas reconhecer que o comunismo ruiu na União Soviética, não só admitir que o Partido Comunista Francês se desfez miseravelmente, mas também, e principalmente, renunciar à hipótese de que Maio de 68 foi uma criação militante claramente consciente do fracasso do “comunismo” de Estado. Maio de 68 e mais ainda os cinco anos que se seguiram inauguraram uma nova seqüência da verdadeira hipótese comunista, aquela que sempre mantém distância do Estado. Ninguém sabia, decerto, no que aquilo tudo ia dar, mas se sabia que se tratava do renascimento da hipótese.
Se Sarkozy é o nome desse estado de coisas, é preciso renunciar a toda idéia de renascimento semelhante. Se a sociedade humana é uma coleção de indivíduos que perseguem seus próprios interesses, se tal é a eterna realidade, o filósofo pode, e deve, abandonar o animal humano a esse triste destino.
Mas não deixaremos que o triunfante Sarkozy nos dite o sentido da existência nem as tarefas da filosofia. Pois isso a que estamos assistindo não impõe de maneira alguma a renúncia à hipótese comunista, e sim a reflexão sobre o momento em que estamos da história dessa hipótese.
Alain Badiou, publicado na revista Piauí.
terça-feira, 30 de setembro de 2008
Cálice (trecho)
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Chico Buarque
sexta-feira, 26 de setembro de 2008
"Onde Azevedo Amaral nos parece lamentavelmente exagerado é em considerar todos aqueles povoadores [...] uns 'tarados, criminosos e semiloucos'. [...] A ermos tão mal povoados, salpicados, apenas, de gente branca, convinham aqui superexcitados sexuais que aqui exercessem uma atividade genésica acima da comum, proveitosa talvez, nos seus resultados, aos interesses políticos de Portugal no Brasil.
Atraídos pela possibilidade de uma vida livre, inteiramente solta, no meio de muita mulher nua, aqui se estabeleceram por gosto ou vontade própria muitos europeus do tipo que Paulo Prado retrata em traços de forte realismo. Garanhões desbragados."
Trecho cômico de 'Casa grande e senzala', de Gilberto Freire
Atraídos pela possibilidade de uma vida livre, inteiramente solta, no meio de muita mulher nua, aqui se estabeleceram por gosto ou vontade própria muitos europeus do tipo que Paulo Prado retrata em traços de forte realismo. Garanhões desbragados."
Trecho cômico de 'Casa grande e senzala', de Gilberto Freire
é provável que pertençamos a uma época de crítica em que a ausência de uma filosofia primeira a cada instante nos lembra o reino e a fatalidade: época da inteligência que nos mantém irremediavelmente à distância de uma linguagem originária. Para Kant, a possibilidade e a necessidade de uma crítica estavam ligadas, através de certos conteúdos científicos, ao fato de que existe conhecimento. em nossos dias, elas estão vinculadas - Nietzsche, o filólogo, é testemunha - ao fato de que existe linguagem e de que, nas inúmeras palavras pronunciadas pelos homens - sejam elas racionais ou insensatas, demonstrativas ou poéticas - um sentido que nos domina tomou corpo, conduz nossa cegueira, mas espera, na obscuridade, nossa tomada de consciência, para vir à luz e pôr-se a falar. Estamos hitoricamente consagrados à história, à paciente construção de discursos, à tarefa de ouvir o que já foi dito.
Michel Foucault, em 'Nascimento da clínica'
Michel Foucault, em 'Nascimento da clínica'
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
Enivrez-vous
Enivrez-Vous. Il faut être toujours ivre. Tout est là: c'est l'unique question. Pour ne pas sentir l'horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve. Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.
Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est;
et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge,vous répondront: "Il est l'heure de s'enivrer! Pour n'être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise.
Charles Baudelaire
Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est;
et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge,vous répondront: "Il est l'heure de s'enivrer! Pour n'être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise.
Charles Baudelaire
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