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sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Os sedutores II

“Quando os amigos lhe perguntavam quantas mulheres tivera, ele dava uma resposta evasiva e, se insistiam, respondia: “umas duzentas”. Alguns invejosos afirmavam que exagerava. Defendia-se: “Nem tanto! Minhas relações com as mulheres começaram há mais ou menos vinte e cinco anos. Dividindo duzentos por vinte e cinco, dá mais ou menos oito mulheres por ano. Não é tanto assim”.
Mas, desde que vivia com Tereza, sua atividade erótica tropeçava em dificuldades de organização: não podia dedicar-lhe (entre sala de operações e sua casa) senão uma pequena faixa de tempo que decerto explorava intensamente (como um agricultor aproveita ao máximo sua faixa de terra), mas não podia se comparar às desesseis horas que súbito recebera de presente. (Digo dezesseis, pois, mesmo as oito horas em que lavava vidraças ofereciam mil oportunidades para marcar encontros com novas vendedoras, funcionárias ou donas-de-casa.)
O que procurava em todas essas mulheres? Por que elas o atraíam? Não seria o amor físico a eterna repetição do mesmo ato?
De forma nenhuma. Há sempre uma porcentagem de inesperado. Ao ver uma mulher vestida, podia de fato imaginar mais ou menos como seria ela nua ( isso sua experiência de médico completava a experiência de amante), mas entre a aproximação da idéia e a precisão da realidade subsistia um pequeno intervalo de inimaginável, e era essa lacuna que não o deixava em paz. Além disso, a busca do inimaginável não termina com a descoberta da nudez, vai além dela: que cara faria ela ao retirar a roupa? O que diria quando fizesse amor? Como soariam seus suspiros? Que rictos se estampariam em seu rosto na hora do orgasmo?
Aquilo que o “eu” tem de único se esconde exatamente naquilo que o ser humano tem de inimaginável. Só podemos imaginar aquilo que é idêntico em todos os seres humanos, aquilo que lhes é comum. O “eu” individual é aquilo que se distingue do geral, portanto aquilo que precisa ser desvelado, descoberto e conquistado junto ao outro.
Tomas, que durante os últimos dez anos de sua atividade médica vinha ocupando exclusivamente do cérebro humano, sabia que não havia nada mais difícil do que identificar o “eu”. Entre Hitler e Einstein, entre Brejnev e Soljenitsin, há muito mais semelhanças do que diferenças. Se quiséssemos expressar essa idéia em números, poderíamos dizer que existe entre eles um milionésimo de diferença e novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e nove milionésimos de semelhança.
Tomas era obcecado pelo desejo de descobrir esse milionésimo, de apoderar-se dele; era essa a essência de sua obsessão pelas mulheres. Não era obcecado pelas mulheres, era obcecado pelo que em cada uma delas havia de inimaginável, ou melhor, era obcecado por esse milionésimo que torna uma mulher diferente das outras.
(Talvez sua paixão de cirurgião se juntasse aqui à sua paixão pelas mulheres. Não largava o bisturi imaginário, nem mesmo quando estava com suas amantes. Desejava apossar-se de algo profundamente escondido no interior delas, e para isso era preciso rasgar a camada superficial que as envolvia.)
Temos, é claro, o direito de perguntar por que ia buscar na sexualidade esse milionésimo de diferença. Por que não procurá-lo, por exemplo, no andar, nas preferências culinárias ou no senso estético de uma ou de outra?
De fato, esse milionésimo de diferença está presente em todos os aspectos da vida humana, e por toda parte é desvelado em público, não havendo necessidade de descobri-lo, ou de um bisturi para chegar a ele. Que uma mulher prefira queijo a todas as outras comidas e que outra não suporte couve-flor é certamente um sinal de originalidade, mas vê-se logo que essa originalidade é insignificante e inútil, e que perderíamos tempo procurando encontrar algum valor nela.
È só na sexualidade que o milionésimo de diferença aparece como uma coisa preciosa, que não se oferece em público e é preciso conquistar. Há meio século, esse gênero de conquista exigia tempo (semanas, às vezes meses!), e o valor do objeto conquistado media-se pelo tempo consagrado a obtê-lo, diminuído bastante, a sexualidade ainda é para nós o cofre onde se esconde o mistério do “eu” feminino.
Não era, portanto, o desejo do prazer (o prazer vinha, digamos, como um prêmio extra), mas o desejo de apossar-se do mundo (de abrir com um bisturi o corpo prostrado do mundo) que o levava à conquista das mulheres.”

Dez réis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.


António Gedeão

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Os sedutores

"Os homens que vão atrás de muitas mulheres podem facilmente ser divididos em duas categorias. Uns procuram em todas elas sua própria idéia de mulher, como lhes aparece em sonho, subjetiva e sempre a mesma. Outros são levados pelo desejo de tomar posse da infinita diversidade do mundo feminino objetivo.
A obsessão dos primeiros é uma obsessão lírica: procuram a si próprios nas mulheres, procuram o seu ideal e são sempre e continuamente frustrados, porque, como sabemos, é impossível encontrar o que é ideal. Como a frustração que os leva de mulher em mulher dá à inconstância deles uma espécie de desculpa melodramática, muitas mulheres sentimentais acham comovente essa poligamia convicta.
A outra obsessão é uma obsessão épica, e as mulheres não veem nisso nada de comovente: como o homem não projeta nelas um ideal subjetivo, tudo lhe interessa e nada pode decepcioná-lo. Essa incapacidade para a decepção tem qualquer coisa de escandaloso. Aos olhos do mundo, a obsessão do épico não pode ser perdoada (porque não é resgatada pela decepção).
Como o sedutor lírico persegue o mesmo tipo de mulher, nem notamos que mudou de amante; seus amigos estão sempre provocando mal-entendidos, pois não percebem a troca de conpanheiras, e chamam todas pelo mesmo nome.
Na sua caçada a novos conhecimentos, os sedutores épicos (e é essa categoria que temos que colocar Tomas) se distanciam cada vez mais da beleza feminina convencional (da qual enjoam bem depressa) e acabam tornando-se colecionadores de curiosidades. Eles sabem disso, sentem um pouco de vergonha e, para não constranger os amigos, evitam aparecer em público com as amantes"


Trecho de "A insustentável leveza do ser", de Kundera.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

jorge ben é genial

ôôôôôôôôôôô
ôôôôôôôôôôô
ôôôôôôôôôôô

Os alquimistas estão chegando
Estão chegando os alquimistas
Os alquimistas estão chegando
Estão chegando os alquimistas

ôôôôôôôôôôô
ôôôôôôôôôôô

êêê
êêê

Eles são discretos e silenciosos
Moram bem longe dos homens
Escolhem com carinho a hora
e o tempo do seu precioso trabalho
São pacientes, assíduos e perseverantes

Executam, segundo as regras herméticas
Desde da trituração, a fixação,
a destilação e a coagulação

Trazem consigo cadinhos
Vasos de vidro, potes de louça
Todos bem iluminados

Evitam qualquer relação com pessoas
de temperamento sórdido
de temperamento sórdido

êêê
êêê
êêê
êêê

Os alquimistas estão chegando
Estão chegando os alquimistas
Os alquimistas estão chegando
Estão chegando os alquimistas

ôôôôôôôôôôô
ôôôôôôôôôôô
ôôôôôôôôôôô...

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A vida bate

Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
- a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!

O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.

Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde


Ferreira Gullar

Banho de Lama

"As casas, as cidades,
são apenas lugares por onde
passando
passamos"




"Sobre os jardins da cidade
urino pus. Me extravio
na Rua da Estrela, escorrego
no Beco do Precipício.
Me lavo no Ribeirão.
Mijo na Fonte do Bispo.
Na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comércio me nego
mas na das Hortas floreço;
na dos Prazeres soluço
na da Palma me conheço
na do Alecrim me perfumo
na da Saúde adoeço
na do Desterro me encontro
na da Alegria me perco
Na Rua do Carmo berro
na Rua Direita erro
e na da Aurora adormeço"




"a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa

cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma

a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas"



Ferreira Gullar, em o "Poema Sujo"

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Acontece, às vezes, de desaparecer a personalidade, e a objetividade, que é própria aos poetas panteístas, desenvolve-se de modo tão anormal que a contemplação dos objetos externos faz com que você esqueça a sua própria existência e confunda-se em seguida com eles. Seu olhar se fixa em uma árvore harmoniosa curvada ao vento. Em alguns segundos, o que seria para o cérebro de um poeta uma comparação bastante natural torna-se realidade para o seu. Primeiramente, você empresta à árvore as suas paixões, seus desejos ou sua melancolia; os gemidos e as oscilações tornam-se seus e, logo, você é a árvore. Da mesma forma, o pássaro que plana no fundo do céu representainicialmente o imortal anseio de planar acima das coisas humanas; mas eis que você é o próprio pássaro. Eu o imagino sentado e fumando. Sua atenção repousará longamente sobre as nuvens azuladas que exalam de seu cachimbo. A idéia de uma evaporação, lenta, sucessiva, eterna, tomará conta de seu espírito, e você aplicará em seguida esta idéia aos seus próprios pensamentos, à sua matéria pensante. Por um estranho equívoco, por uma espécie de transposição ou de quiproquó intelectual, você se sentirá evaporando, e atribuirá ao seu cachimbo (no qual você vai se sentir curvado e encolhido como o tabaco) a estranha faculdade de fumá-lo.


Baudelaire, em "O teatro de Serafim".

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

"São as capacidades que excedem toda funcionalidade produtiva, é a cultura que não serve para nada que torna uma sociedade capaz de cotejar questões sobre mudanças que se operam nela, capaz de imprimir um sentido em si mesma."

André Gorz, em "O Imaterial"
Digo-lhe que venha, que me possua outra vez. Ele obedece. É bom o cheiro do cigarro inglês, o perfume caro, ele cheira a mel, sua pele absorveu o cheiro da seda, aquele cheiro de fruta do tussor de seda, do ouro, ele desperta o desejo. Digo que o desejo. Diz que devo esperar. Ele fala, diz que desde o primeiro momento, desde a travessia do rio sabia que eu seria assim depois do meu primeiro amante, que eu amaria o amor, sabia que desde o momento que eu o enganaria e que ia enganar a todos os homens com quem fizesse amor. Disse que,quanto a ele, forainstrumento da prápria infelicidade. Digo que o que está dizenso me faz feliz. ele fica violento, seu sentimento é de desespero, atira-se sobre meu corpo, devora os seios de criança, grita, insulta. Fecho os olhos para o prazer imenso. Penso: está habituado, é isso que ele faz na vida, amor, somente isso. As mãos são hábeis, maravilhosas, perfeitas. Tenho muita sorte, é claro, é como se fosse uma profissão, sem saber ele sabe exatamente o que deve ser feito, o que deve ser dito. Ele me chama de puta, de nojenta, diz que sou seu único amor, e é isso que deve dizer e é isso que se diz quando não se controlam as palavras, quando se deixa que o corpo faça, que procure e encontre e possua o que deseja, e então tudo é bom, não há sujeira, a sujeira está encoberta, tudo é levado pela torrente, pela força do desejo.


Ibid.
"Olha ali quem tá pedindo aprovação
Não sabe nem pra onde ir
Se alguém não aponta a direção
Periga nunca se encontrar
Será que ele vai perceber
Que foge sempre do lugar
Deixando o ódio se esconder
Talvez se nunca mais tentar
Viver o cara da TV
Que vence a briga sem suar
E ganha aplausos sem querer"
Os olhos também são claros. O vestido rosa e antigo, e empoeirada a capelina negra, sob o sol da rua. Ela é esguia, alta, desenhada a nanquim, uma pintura. As pessoas param e olham maravilhadas a elegância daquela estrangeira que passa sem ver. Soberana. Não se pode dizer imediatamente de onde vem. E depois pensa-se que só pode ter vindo de outra parte, de longe. Ela é bela, bela por isso. Veste-se com antigos trapos da Europa, restos de brocados, velhos costumes fora de moda, velhas cortinas, velhos bens, velhos fragmentos, velhos farrapos de alta costura, velhas peles de raposa comidas de traça, velhas lontras, sua beleza é assim, rasgada, friorenta, soluçante, e de exílio, nada lhe fica bem, tudo é grande demais para ela, e é belo, ela flutua, frágil, não se fixa em nada, mas é belo. Ela é feita assim, no rosto e no corpo, de modo que tudo que a toca logo participa, infalivelmente, daquela beleza.

Marguerite Duras, "O amante".

De que me rio eu?... Eu rio horas e horas

De que me rio eu?... Eu rio horas e horas
só para me esquecer, para me não sentir.
Eu rio a olhar o mar, as noites e as auroras;
passo a vida febril inquietantemente a rir.

Eu rio porque tenho medo, um terror vago
de me sentir a sós e de me interrogar;
rio pra não ouvir a voz do mar pressago
nem a das coisas mudas a chorar.

Rio pra não ouvir a voz que grita dentro de mim
o mistério de tudo o que me cerca
e a dor de não saber porque vivo assim.


António Patrício

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O Haver

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Vinicius de Moraes
15/04/1962

segunda-feira, 11 de maio de 2009

E por vezes as noites duram meses

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.




David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Um acontecimento, às vezes, pode nos despertar tanto desgosto e raiva de alguém que é capaz de muitas coisas ditas quando ainda se afloram sentimentos ruins poderem ser confudidas com uma vingança. Na verdade, no momento, talvez seja a única forma e a mais imediata reação que se possa ter. Nada que torne dignas essas palavras grosseiras, muito menos, que torne digna a pessoa que as escreve, que pelo contrário assume realmente coisas terríveis que acontecem e depois daí passa somente a ver a si e a suas ações por essas lentes contaminadas pela verdade dita por algum outro.
Mas aí é que está.
Será que se alguma coisa de ruim que é percebida (percebamos o problema dessa 'percepção), ela deve ser falada, deve ser exposta para quem seria o autor do crime? Será que há alguma coisa a ser percebida, e se for, será que poderá ser consertada, e se não puder, será que adiantará ser dita?
Muitas perguntas esquisitas e que pode parecer uma fuga dos 'verdadeiros' problemas de alguém que sempre irá fugir deles e relegá-los a alguma parte do seu espírito, onde provavelmente nem ele saiba.
Não sei...não sei...
Acho que o importante é o sentimento resultante de tanta análise e percepção, sobretudo, de uma percepção indireta de que alguém é uma merda, e de que um outro alguém não falha. De que alguém se esconde e de que alguém grita uma potência quase sem limites. De que alguém é réu e culpado. De que ele não é nada e poderia ser tudo. De que ele deve ser esquecido como se fosse um passado o qual ninguém quer na memória.
Meu pedido é que julguem muito, analisem bastante, tenham alguém o máximo de tempo possível na sua cabeça, mas não os façam perceber que os erros que cometeram são irreversíveis, que seu passado é condenável, e que tudo de bom que poderia ter acontecido foi ela, justamente ela que acabou com tudo!
Amem! Mas o façam, se possível, em silêncio!


Anônimo

sábado, 2 de maio de 2009

Clichês perfeitos para o momento

Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Pirocas grandes, personalidades fortes e solidão (parte II)

"Nas noites de inverno, enquanto fervia a sopa no fogão, desejava o calor dos fundos da loja, o zumbido do sol nas amendoeiras empoeiradas, o apito do trem na sonolência da sesta, da mesma forma como desejava em Macondo a sopa de inverno no fogão, os pregões do vendedor de café e as cotovias fugazes da primavera. Aturdido por duas saudades colocadas de frente uma para a outra como dois espelhos, perdeu o seu maravilhoso sentido de irrealidade até que terminou por recomendar a todos que fossem embora de Macondo, que esquecessem tudo o que ele ensinara do mundo e do coração humano, que cagassem para Horácio e que em qualquer lugar em que estivessem se lembrassem de que o passado era mentira, que a memória não tinha caminhos de regresso, que toda primavera antiga era irrecuperável e que o amor mais desatinado e tenaz não passava de uma verdade efêmera."

Pirocas grandes, personalidades fortes e solidão (parte III)

"Em seguida, derivou para episódios dispersos, mas os evocou sem qualificá-los, porque de tanto não poder pensar em outra coisa tinha aprendido a pensar frio, para que lembranças iniludíveis não lhe estragassem nenhum sentimento. De volta à oficina, vendo que o ar começava a secar, decidiu que era um bom momento para tomar banho, mas Amaranta se havia antecipado a ele. De modo que começou o segundo peixinho do dia. Estava engatando o rabo quando o sol saiu com tanta força que a claridade rangeu como uma canoa. O ar lavado pela chuvinha de três dias se encheu de tanajuras. Então caiu em si, percebendo que tinha vontade de urinar e estava adiando até que acabasse de armar o peixinho. Ia para o quintal, às quatro e dez, quando ouviu os instrumentos, longínquos, as batidas do bumbo e a alegria das crianças, e pela primeira vez desde a juventude pisou conscientemente numa armadilha da saudade e reviveu a prodigiosa tarde de ciganos em que o seu pai o levou para conhecer o gelo. Santa Sofía de la Piedad abandonou o que estava fazendo na cozinha e correu para porta.
- É o circo - gritou.
Em vez de se dirigir ao castanheiro, o Coronel Aureliano Buendía foi também para a porta da rua e se misturou com os curiosos que comtemplavam o desfile. Viu uma mulher vestida de ouro no cangote de um elefante. Viu um dromedário triste. Viu um urso vestido de holandesa que marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola. Viu os palhaços virando cambalhotas no final do desfile e viu outra vez a cara da sua solidão miserável quando tudo acabou de passar e não ficou senão o luminoso espaço da rua e o ar cheio de tanajuras e uns quantos curioso próximos ao precipício da incerteza. Então foi para o castanheiro, pensando no circo, e enquanto urinava tentou continuar pensando no circo, mas já não encontrou a lembrança. Meteu a cabeça entre os ombros, como um frango, e ficou imóvel com a testa apoiada no tronco do castanheiro. A família não soube de nada até o dia seguinte, às onze da manhã, quando Santa Sofía de la Piedad foi jogar o lixo no quintal e lhe chamou a atenção o fato de estarem baixando os urubus."

pirocas grandes, personalidades fortes e solidão

"Uma tarde, quando todos dormiam a sesta, não aguentou mais e foi ao seu quarto. Encontrou-o de cuecas, acordado, estendido na rede que pendurara nos ganhos com os cabos de amarrar navio. Impressionou-a tanto a sua enorme nudez sarapintada que teve o ímpeto de retroceder. "Vem cá", disse ele. Rebeca obedeceu. Deteve-se junto da rede, suando gelo, sentindo que se formavam nós nas tripas enquanto José Arcadio lhe acariciava os tornozelos com a polpa dos dedos, e depois a barrigadas pernas e depois as coxas, murmurando: "Ah, maninha; ah, maninha." Ela teve que fazer um esforço sobrenatural para não morrer quando uma potência ciclônica, assombrosamente regulada, levantou-a pela cintura e despojou-a da sua intimidade com três patadas, e esquartejou-a como a um passarinho. Conseguiu dar graças a Deus por ter nascido, antes de perder a consciência no prazer inconcebível daquela dor insuportável, chapinhando no lago fumegante da rede que absorveu como um mata-borrão a explosão de seu sangue"


Gabriel G. Márquez, em "Cem anos de solidão"

sexta-feira, 20 de março de 2009

Vem

"Vem!
Por favor, não evites,
meu amor, meus convites,
minha dor,
meus apelos!

Vou te envolver nos cabelos!
Vem perder-te em meus braços,
pelo amor de Deus!

Vem que eu te quero fraco!
Vem que eu te quero tolo!
Vem que eu te quero todo meu!"

Chico