terça-feira, 29 de setembro de 2009

A vida bate

Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
- a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!

O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.

Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde


Ferreira Gullar

Banho de Lama

"As casas, as cidades,
são apenas lugares por onde
passando
passamos"




"Sobre os jardins da cidade
urino pus. Me extravio
na Rua da Estrela, escorrego
no Beco do Precipício.
Me lavo no Ribeirão.
Mijo na Fonte do Bispo.
Na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comércio me nego
mas na das Hortas floreço;
na dos Prazeres soluço
na da Palma me conheço
na do Alecrim me perfumo
na da Saúde adoeço
na do Desterro me encontro
na da Alegria me perco
Na Rua do Carmo berro
na Rua Direita erro
e na da Aurora adormeço"




"a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa

cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma

a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas"



Ferreira Gullar, em o "Poema Sujo"

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Acontece, às vezes, de desaparecer a personalidade, e a objetividade, que é própria aos poetas panteístas, desenvolve-se de modo tão anormal que a contemplação dos objetos externos faz com que você esqueça a sua própria existência e confunda-se em seguida com eles. Seu olhar se fixa em uma árvore harmoniosa curvada ao vento. Em alguns segundos, o que seria para o cérebro de um poeta uma comparação bastante natural torna-se realidade para o seu. Primeiramente, você empresta à árvore as suas paixões, seus desejos ou sua melancolia; os gemidos e as oscilações tornam-se seus e, logo, você é a árvore. Da mesma forma, o pássaro que plana no fundo do céu representainicialmente o imortal anseio de planar acima das coisas humanas; mas eis que você é o próprio pássaro. Eu o imagino sentado e fumando. Sua atenção repousará longamente sobre as nuvens azuladas que exalam de seu cachimbo. A idéia de uma evaporação, lenta, sucessiva, eterna, tomará conta de seu espírito, e você aplicará em seguida esta idéia aos seus próprios pensamentos, à sua matéria pensante. Por um estranho equívoco, por uma espécie de transposição ou de quiproquó intelectual, você se sentirá evaporando, e atribuirá ao seu cachimbo (no qual você vai se sentir curvado e encolhido como o tabaco) a estranha faculdade de fumá-lo.


Baudelaire, em "O teatro de Serafim".
Sonhei contigo ontem. Sonhei que dormia e que acordava com seus carinhos e com seu olhar nos meus olhos se abrindo. Seu olhar...Vi todo um passado num só relance. Você me contava que tinha esperado eu acordar por muito tempo, mas que não houve sofrimento nenhum. Não precisou de paciência. Disse que sabia que quando eu acordasse valeria a pena da espera. Eu, a meia voz, contava que fora a melhor surpresa do mundo acordar assim. Contava para ti que muita coisa estava presa na minha garganta, e que fizera mal a tanta gente...Você sorriu, dizendo que isso não importava mais, que eu te contaria tudo ali, naquela hora, e tudo estaria bem depois. Tive vontade de dizer que te amava. Segurei-me. Agora me arrependo. Entendi então que o espaço compreendido entre meu rosto e o seu, delimitado pelos seus cabelos e pela luz alaranjada desperdiçada pelo sol se pondo era onde eu viveria mais intensamente, era onde eu deveria morrer. Escapou-me um sorriso, um bem aberto. Pisquei os olhos, talvez numa tentativa de testar a realidade, mas paguei a pena. Você sumiu então literalmente num piscar de olhos, e troquei meu espaço ideal por uma cama escura e solitário de um começo de noite. Acordei. Você nunca tinha existido.

Irmão

Quero te abraçar pra sempre
Sentir que tudo é certo nos seus braços
Tudo é errado em você
Não to afim do seu cheiro. O seu cheiro...
Mas quero sentir o que!
Te dizer que sou nada sem você, menos ainda contigo!
Calar a tua boca a toda besteira que consegue falar, e te falar que o silêncio é um bom companheiro!
Cala-te e faz do meu carinho o seu, esqueça tudo que você fez e conseguiu pra ti.
Sou teu companheiro, sou teu irmão, sou tua alma!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

"São as capacidades que excedem toda funcionalidade produtiva, é a cultura que não serve para nada que torna uma sociedade capaz de cotejar questões sobre mudanças que se operam nela, capaz de imprimir um sentido em si mesma."

André Gorz, em "O Imaterial"
Digo-lhe que venha, que me possua outra vez. Ele obedece. É bom o cheiro do cigarro inglês, o perfume caro, ele cheira a mel, sua pele absorveu o cheiro da seda, aquele cheiro de fruta do tussor de seda, do ouro, ele desperta o desejo. Digo que o desejo. Diz que devo esperar. Ele fala, diz que desde o primeiro momento, desde a travessia do rio sabia que eu seria assim depois do meu primeiro amante, que eu amaria o amor, sabia que desde o momento que eu o enganaria e que ia enganar a todos os homens com quem fizesse amor. Disse que,quanto a ele, forainstrumento da prápria infelicidade. Digo que o que está dizenso me faz feliz. ele fica violento, seu sentimento é de desespero, atira-se sobre meu corpo, devora os seios de criança, grita, insulta. Fecho os olhos para o prazer imenso. Penso: está habituado, é isso que ele faz na vida, amor, somente isso. As mãos são hábeis, maravilhosas, perfeitas. Tenho muita sorte, é claro, é como se fosse uma profissão, sem saber ele sabe exatamente o que deve ser feito, o que deve ser dito. Ele me chama de puta, de nojenta, diz que sou seu único amor, e é isso que deve dizer e é isso que se diz quando não se controlam as palavras, quando se deixa que o corpo faça, que procure e encontre e possua o que deseja, e então tudo é bom, não há sujeira, a sujeira está encoberta, tudo é levado pela torrente, pela força do desejo.


Ibid.
"Olha ali quem tá pedindo aprovação
Não sabe nem pra onde ir
Se alguém não aponta a direção
Periga nunca se encontrar
Será que ele vai perceber
Que foge sempre do lugar
Deixando o ódio se esconder
Talvez se nunca mais tentar
Viver o cara da TV
Que vence a briga sem suar
E ganha aplausos sem querer"

suspiro

O sussurro-gemido-grito-prazer sendo concebido no topo do peito, começando a deslizar suavemente pelo começo da garganta, fazendo cócegas antes de escapar em forma de ar, e passando a ser som quando entra em contato com a língua. Língua bailarina que sempre gostou dessas cócegas sorrateiras que chegam anunciando a satisfação, por isso sempre procura. Está sempre procurando. O pulmão, reprimido qual sempre foi, acha esse escape dos seus brônquios a coisa mais safada do mundo, e prepara o suspiro com um cuidado que ninguém consegue ter, talhando-o. A garganta adora passar a mão nele, e acarariciando-o conduz seu caminho até onde for possível. Ela quer é que ele voe. Não para. Não para alguém. O suspiro quer voar. A pele, de onde pode, arrepia-se, quer entrar na bagunça, ninguém quer perder. Fica espiando pra ver no que vai dar, pra ver onde vai entrar. O colapso vem com os nervos. Pobres fracos. Não suportam nada estanque, querem que tudo se esvaia. Querem fazer do prazer espírito. Se contorcem, se estapeiam, chegando até à descarga completa do amor. E o coração agora começa a sossegar, a querer que o mundo pare de rodar, que o nada seja trocado pelo alguma coisa, por uma bobeira que seja... Sossega suas pulsações. Chega!
Sangue, segure-se, Pele, desarrepie-se, Prazer, volte quando bem entender.
Os olhos também são claros. O vestido rosa e antigo, e empoeirada a capelina negra, sob o sol da rua. Ela é esguia, alta, desenhada a nanquim, uma pintura. As pessoas param e olham maravilhadas a elegância daquela estrangeira que passa sem ver. Soberana. Não se pode dizer imediatamente de onde vem. E depois pensa-se que só pode ter vindo de outra parte, de longe. Ela é bela, bela por isso. Veste-se com antigos trapos da Europa, restos de brocados, velhos costumes fora de moda, velhas cortinas, velhos bens, velhos fragmentos, velhos farrapos de alta costura, velhas peles de raposa comidas de traça, velhas lontras, sua beleza é assim, rasgada, friorenta, soluçante, e de exílio, nada lhe fica bem, tudo é grande demais para ela, e é belo, ela flutua, frágil, não se fixa em nada, mas é belo. Ela é feita assim, no rosto e no corpo, de modo que tudo que a toca logo participa, infalivelmente, daquela beleza.

Marguerite Duras, "O amante".
J'aime mon image d'aujourd'hui.
J'aime mon bain d'experience.
J'aime le monde comme lui se présente.
Je veut m'entendre au monde!
Je voudrais manger le monde!
Há um site bem interessante pra quem gosta do filósofo Gilles Deleuze e de economizar dinheiro através de pirataria. O nome é "Dossiê Gilles Deleuze", e há senão todos os textos, a maioria deles, inclusive resenhas de textos dele e depoimentos sobre o francês. Fikadica: http://www.dossie_deleuze.blogger.com.br/index.html

Engane-se

Diria que sim. A vontade é dizer sim! Pra tudo. Principalmente pra você. E gritar, gritar muito! E bradar o hino da loucura, do descontrole, ou inventar um!
Não dizer é um desperdício tão grande! Não gritar! Mas quem sou eu pra falar de desperdício, de perda...
Esqueça! Sou o que sou agora, o que fui já não é, e sou possuído a todo instante por quem não sou, e não sei mais se sou quem me possuo ou o possuído. Não vá querer me prever, me censurar me chamando de mentiroso! Um mentiroso não se diz mentiroso, mesmo quando quer dizer a verdade. Então só sinta o que vos falo, esqueça se minto, se quero te enganar. Afinal, sentir é enganar a si mesmo, é enganar teu corpo, de que o mal não existe, convencendo-o de que tudo é um só, de que não falta mais nada, de que aquele intervalo de um segundo basta toda sua existência. Acredite, ou se engane: quero gritar!

De que me rio eu?... Eu rio horas e horas

De que me rio eu?... Eu rio horas e horas
só para me esquecer, para me não sentir.
Eu rio a olhar o mar, as noites e as auroras;
passo a vida febril inquietantemente a rir.

Eu rio porque tenho medo, um terror vago
de me sentir a sós e de me interrogar;
rio pra não ouvir a voz do mar pressago
nem a das coisas mudas a chorar.

Rio pra não ouvir a voz que grita dentro de mim
o mistério de tudo o que me cerca
e a dor de não saber porque vivo assim.


António Patrício

terça-feira, 8 de setembro de 2009

entre dois lugares

-Desculpe, minha senhora, mas por acaso exalo algum cheiro que a desagrade?
-Pois não?
-Meu cheiro a incomoda?
-Perdão, meu senhor, mas que tipo de pergunta é essa?
-Uma que é como qualquer outra...
-Convenhamos que não é uma bem comum...
-Convenho sim, mas então não irá responder?
-Se minha resposta é tão importante para o senhor, digo que sim, seu odor não me agrada de forma alguma.
-Bom, essa resposta só veio a confirmar minha suposição. O incômodo também é capaz de se exalar pelas pessoas.
-...não foi minha intenção...
-Não se aflija, cara senhora. Incomodo-me também muitas vezes com muitas coisas. Mas descobri que minha vida é outra, e muito melhor, depois que aprendi a gostar do que me incomodava, de tentar cheirar as coisas de outra maneira.
-E isso é possível? Cheirar uma mesma coisa de duas formas?
-E o que não é? Talvez fosse possível para a senhora também gostar de algo que a incomode, como meu cheiro.
-E por que se importa se gosto ou não de seu cheiro?
-E a senhora não gosta de que gostem de você?
-Mas em que dimensão cheirar e gostar tem relação um com o outro?
-Em todas, minha senhora. Não vês? Só se gosta pelo cheiro! O cheirar é o próprio gostar!